Câncer de mama: veneno de cascavel traz esperança aos casos mais agressivos.

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Quase 10 mil brasileiras, ou 15% daquelas que irão descobrir um câncer de mama neste ano de 2022 de acordo com o INCA (Instituto Nacional do Câncer), serão diagnosticadas com um tumor triplo negativo, a forma mais cruel da doença. Cruel, para início de conversa, porque é mais frequente em mulheres jovens, com menos de 40 anos, negras e latinas. Espalha-se mais depressa. E também pela dificuldade que o próprio nome desse subtipo já revela.

O tumor triplo negativo não tem na superfície de suas células malignas receptores para estrógeno, nem para progesterona, nem sequer para a proteína HER-2. E seria nesses três pontos frágeis, por assim dizer, que agiriam muitos dos tratamentos disponíveis.

Esse subtipo se prolifera sem a ajuda de nada disso. Dispensa o empurrãozinho dos hormônios femininos, por exemplo, e deixa o arsenal terapêutico de mãos atadas para freá-lo.

Tudo bem que, de 2019 para cá, foi aprovada no país a imunoterapia para tentar conter essa forma de câncer, bem como já existem alguns anticorpos conjugados com medicamentos.

Os oncologistas podem ainda apelar para a quimioterapia clássica, mas ela é pesada e cheia de efeitos adversos, daí que fica guardada para os casos mais avançados. Só que, mesmo com as últimas conquistas da Medicina, os números continuam desanimadores. Até 45% das mulheres morrem em menos de cinco anos e aproximadamente um terço, depois de se alegrar com o sumiço da doença, vê o câncer de mama voltar.

A boa notícia para abrir mais um Outubro Rosa é que uma startup brasileira, a PHP Biotech, sediada em Botucatu, no interior paulista, acena com a esperança de mudar a realidade de quem recebe o diagnóstico de um tumor triplo negativo.

Seus cientistas desenvolveram uma molécula, a 3-NAntC, capaz de levar as células desse câncer ao suicídio. Em outras palavras, induzir o que os cientistas chamam de apoptose. E o melhor: a 3-NAntC mal afeta o tecido sadio na vizinhança.

O curioso é saber o que inspirou essa candidata a remédio revolucionário, com potencial para, quem sabe, combater até mesmo outros cânceres: o veneno da Crotalus durissus terrificus. Das 35 cascavéis encontradas pelo mundo, é a única espécie a viver no Brasil. Aliás, ela só é encontrada por aqui.

“Mas a molécula que investigamos já não é igual à original”, avisa Moacyr Bighetti, empreendedor e CEO da PHP Biotech. “Ela foi modificada para não causar nenhum dos efeitos tóxicos do veneno da serpente.” Na realidade, a toxicidade foi reduzida em 95%, enquanto a capacidade de levar o tumor à morte aumentou. A expectativa é que, em cerca de dois anos, a medicação esteja à disposição das pacientes.

Da picada de cobra para o tratamento oncológico

O som de chocalho anuncia o perigo: habitante do nosso Cerrado, das regiões áridas e semi-áridas do Nordeste, das matas do Sudeste e até das do Norte e, ainda, dos campos abertos do Sul, a cascavel não só domina o território brasileiro como ocupa o primeiro lugar entre as cobras que provocam mortes entre nós.

Pela picada, que nem dói muito, derrama um veneno capaz de prejudicar os rins, afetar o sistema nervoso e lesionar os músculos. Acabou? Que nada! Nele, há uma substância que faz o sangue da vítima endurecer, como se todo ele virasse uma casquinha de machucado. Isso porque se parece com uma das proteínas responsáveis pela coagulação.

Era nesse efeito que Moacyr Bighetti e seus colegas estavam de olho quando pesquisavam outro medicamento, para ajudar na cicatrização. “A questão era que a quantidade que conseguíamos extrair dessa proteína coagulante era muito pequenina”, relembra. “Em uma tentativa de dividir os custos com outra pesquisa, arrisquei perguntar o que mais haveria no veneno dessa cobra que poderíamos usar.”

A resposta foi: a crotoxina, molécula característica da peçonha da Crotalus. “Mas ela serve para alguma coisa?”, indagou. Ouviu, então, que era um potente antitumoral, o qual só não era usado por ser extremamente tóxico.

“Foi justamente por causa da toxicidade que, apesar de notar um efeito contra o câncer, um estudo com pacientes terminais realizado vinte anos antes na Argentina acabou sendo interrompido”, conta o infectologista Eduardo Motti que, depois de atuar no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), dedicou três décadas à pesquisa clínica de medicamentos em algumas das maiores indústrias farmacêuticas do globo. Hoje, ele é consultor da PHP Biotech.

Diante disso, os cientistas dessa startup começaram a quebrar a cabeça. Ou melhor, a quebrar a grande molécula de crotoxina, procurando entender que porções possuíam ação tóxica e que porções teriam predominantemente uma ação antitumoral. Chegaram a três pedaços, isto é, a três moléculas menores que entregaram a um laboratório parceiro na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto.

Isso faz dois anos. Ali, estava a biotecnologista Patrícia Heloise Alves Bezerra, que hoje integra o time de pesquisadores da startup, mas que, na época, concluía seu doutorado em oncologia. Por sorte, sua orientadora trabalhava há 25 anos com câncer de mama e, portanto, ela também estava se especializando nessa doença.

Pense bem: se não fosse isso, o trio de moléculas poderia ter sido testado em qualquer outro tipo de tumor. Mas Patrícia Bezerra acabou examinando sua ação naquelas células doentes com as quais já trabalhava, as de mama, comparando com os efeitos em células sadias “Queríamos uma molécula que matasse as malignas, sem destruir as benignas”, resume.

Uma das três— a tal 3-NAntC — conseguiu essa proeza, tanto nas amostras do subtipo luminal, aquele que depende dos hormônios sexuais femininos para crescer, quanto diante do desafiador tipinho triplo negativo.

“O câncer de mama luminal corresponde a 60% dos casos da doença e, por isso, geralmente a indústria farmacêutica investe mais em pesquisas para resolvê-lo”, observa a cientista. “O interessante é que decidimos seguir investigando o triplo negativo porque, embora represente uma parcela menor da incidência, ele não tem remédios específicos. Desse modo, podemos fazer uma tremenda diferença para as mulheres com esse tumor.”

Para onde vai a pesquisa

Os testes em animais, realizados fora do Brasil, devem ser concluídos nos próximos meses. Além de evitar o crescimento do tumor de mama, a 3-NAntC impediu o aparecimento de metástases. Hoje em dia, a molécula já é completamente sintetizada, isto é, não é extraída do veneno da cascavel.

Comparada às duas drogas quimioterápicas usadas até o momento contra o subtipo triplo negativo, ela superou de longe os resultados de uma e empatou com outra. Mas, mesmo no empate, apresentou a enorme vantagem de ser bem menos tóxica.

“Talvez pela maneira como destrói as células malignas, que é induzindo o seu suicídio em vez de provocar uma necrose”, imagina Patrícia Bezerra. A necrose arrasa uma região, acabando com células tanto doentes quanto sadias que estiverem por ali.

Em peixes-zebra, modelo animal cada vez mais usado no câncer de mama, o esperado era ir aumentando a dose da 3-NAntC até matar a metade deles para conhecer o limite toxicidade “E, no entanto, a dosagem foi aumentada em 150 mil vezes sem nenhum animal morrer”, revela Bighetti.

A empresa estuda, agora, a melhor maneira de entregar essa molécula no organismo para evitar sua degradação pelo caminho até a área doente. “Provavelmente, ela irá dentro de um anticorpo que irá levá-la protegida até tumor”, aponta o doutor Eduardo Motti.

Também deve pedir à FDA, a agência americana que regula medicamentos, para iniciar os ensaios com pacientes nesse país. Simples: nos Estados Unidos, há a possibilidade de a 3-NAntC pegar uma espécie de fast-track, uma fila rápida por se tratar de uma molécula promissora contra um câncer que ainda não tem tratamento adequado, driblando uma série de burocracias.

“Nossa expectativa é que ela reproduza os mesmos resultados em seres humanos”, diz, animado, o oncologista brasileiro Eduardo Braun, radicado há 16 anos em Chicago e que também está envolvido no desenvolvimento do remédio pela PHP Biotech.

Segundo ele, a baixa toxicidade indica que o tratamento inspirado no veneno da cascavel não afetará o dia a dia das pacientes. Sem contar que oferece a possibilidade de a molécula, se não der cabo do câncer sozinha, ser usada com os outros tratamentos já disponíveis para dar a paulada final no tumor triplo negativo.

O oncologista acrescenta esperançoso: “Quando esse remédio for aprovado nos Estados Unidos, não tardará a acontecer o mesmo no Brasil, porque é o que temos visto quando surge um novo medicamento contra o câncer”. Existe uma boa estrada até lá, é verdade. Mas, pelo visto, ela será percorrida em alta velocidade.

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