Uma funcionária do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, em Roraima, gravou uma conversa com um assessor considerado braço direito do então coordenador da unidade, vinculada ao Ministério da Saúde, que reforça suspeitas de fraude em esquema de fornecimento de medicamentos básicos aos indígenas.
A funcionária atuava em área estratégica no distrito, que faz o controle da entrada e saída de medicamentos destinados às aldeias na Terra Indígena Yanomami.
No mês seguinte, a funcionária decidiu gravar nova abordagem feita para evidenciar que o esquema seguia ativo. Ela se negou a participar, conforme as investigações.
“Eu preciso que ateste essa nota”, afirmou a ela o assessor Cândido Lira, conforme a Procuradoria. “Pelo menos para eu despachar esse medicamento”, continuou, segundo a transcrição.
Ele disse no diálogo que o coordenador do DSEI havia pedido uma solução: “Resolve”. Diante das negativas da funcionária, o assessor afirmou na conversa que daria um jeito de conseguir a documentação necessária.
A gravação ambiental foi considerada válida pela Justiça Federal em Roraima e serviu como elemento de prova para que o juiz Bruno Hermes Leal autorizasse buscas e apreensões nos endereços de sete suspeitos de participação no esquema, inclusive o envolvido na abordagem à funcionária.
Uma operação foi deflagrada em 30 de novembro, com o propósito de combater o suposto desvio de recursos públicos destinados à compra de medicamentos aos yanomamis.
Segundo a PF e o MPF, as supostas fraudes resultaram na retenção de medicamentos, em especial vermífugos, o que deixou 10.193 crianças desassistidas. O resultado foi um “aumento de infecções e manifestações de formas graves da doença, com crianças expelindo vermes pela boca”.
A reportagem não conseguiu contato com os suspeitos que eram vinculados ao DSEI Yanomami.
Sócio da Balme, Roger Henrique Pimentel disse que a empresa ganhou uma licitação, antes da suspeita envolvendo o assessor. “A empresa não tem ligação nenhuma com a coordenação do DSEI porque trabalhamos com licitação. É tudo feito pela internet, pelo Comprasnet [portal de compras do governo federal]”, afirmou.
“Quem disse que a Polícia Federal acerta tudo e trabalha com a verdade toda vez? É impossível ter desvio porque o medicamento que nós entregamos nós não recebemos até agora. Tenho documentos do DSEI pedindo nota fiscal para me pagar por medicamento que entregamos e não recebemos”, disse Pimentel.
Um dos coordenadores do DSEI, Rômulo Pinheiro de Freitas, foi nomeado para o cargo em julho de 2020 pelo então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello (PL). Ficou na função até janeiro de 2022, quando foi substituído pelo ex-vereador de Mucajaí (RR) Ramsés Almeida da Silva. A nomeação de Silva foi feita pelo então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
Como a Folha de S.Paulo mostrou, os ex-dirigentes têm ligações políticas com o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e o filho do senador, o deputado federal Jhonatan de Jesus (Republicanos-RR). O Senado aprovou no último dia 8 a indicação do deputado para o cargo de ministro do TCU (Tribunal de Contas da União).
Freitas, por exemplo, é filho de Socorro Pinheiro, que em 2018 concorreu a deputada estadual por Roraima na mesma chapa do senador e do deputado -todos eles promoveram eventos juntos e dividiram santinhos, como mostram fotos nas redes sociais.
A principal fornecedora para a campanha de Socorro foi uma empresa que está no nome das filhas de Mecias, irmãs de Jhonatan. Já Ramsés Silva tentou se reeleger vereador em Mucajaí pelo Republicanos de Jhonatan e Mecias, mas acabou como suplente. Os três aparecem juntos em fotos de eventos públicos e reuniões.
Era de Ramsés Silva que Cândido Lira era assessor. A gravação indica que o funcionário agiu sob ordem do coordenador do distrito, conforme relatórios da PF e da Procuradoria, que também citam favorecimento à Balme Empreendimentos.
As investigações também levaram em conta os depoimentos de diferentes funcionários do DSEI que atuaram na área de controle de medicamentos. Os testemunhos detalham as relações entre os suspeitos e a insistência para uma suposta inclusão fraudulenta de estoques, mesmo sem remessa do material.
A gravação feita reforça o teor dos depoimentos prestados por outros funcionários e indica uma suposta tentativa de chantagem contra a servidora.
A PF afirmou que uma parte ínfima do que foi contratado acabou sendo entregue ao DSEI Yanomami. O esquema “aprofundou a tragédia humanitária dos yanomamis”, disse a polícia.
Conforme os policiais, o prejuízo aos cofres públicos em uma única entrega fraudulenta foi de R$ 572,5 mil.
O esquema gerou “um desabastecimento farmacêutico generalizado de medicamentos essenciais”. Essa escassez fez aumentar expressivamente a quantidade de indígenas transportados em aviões para hospitais em Boa Vista, como constataram as investigações.
Para o MPF, ficou caracterizado um “cenário de grave desorganização e corrupção de agentes do DSEI Yanomami nos anos de 2021 e 2022”, com superfaturamento de contrato e fraude no recebimento de medicamentos.
No apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro (PL), o MPF chegou a pedir uma intervenção no distrito, com administração direta pelo Ministério da Saúde em Brasília.
Em 20 de janeiro, o governo Lula (PT) declarou estado de emergência em saúde pública na terra indígena. Na semana passada, teve início uma operação para destruição da logística do garimpo e para retirada dos mais de 20 mil invasores. A operação pode durar de seis meses a um ano.
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