Ana Bottallo e Samuel Fernandes (São Paulo, SP) – O pagamento de mais de 200 mil bolsas de pós-graduação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) está paralisado devido ao congelamento de verba do MEC (Ministério da Educação) aprovado há uma semana pelo Ministério da Economia.
Segundo nota do órgão, responsável pelo fomento, regulação e avaliação da pós-graduação brasileira, a autorização para desembolsos financeiros durante o mês de dezembro foi zerada, o que retirou a “capacidade de desembolso de todo e qualquer valor -ainda que previamente empenhado e liquidado”.
A Capes diz estar em contato com os demais ministérios para conseguir a desobstrução dos recursos. Por enquanto, bolsistas de todo o país se encontram na situação de não receber os pagamentos já neste mês, dificultando a realização de atividades cotidianas como comprar comida e pagar por transporte.
É o caso da bióloga Amanda Schiersner, 30, que faz sua pesquisa de doutorado sobre HPV (vírus do papiloma humano) no Instituto do Câncer, em São Paulo. Schiersner está no segundo ano do doutorado pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Medicina da USP e recebe uma bolsa no valor de R$ 2.200.
“A minha bolsa equivale a 50% da renda mensal da minha família, e ficar sem o pagamento deixa a gente em uma situação bem desesperadora. Eu já chorei bastante porque não sei como vou fazer”, disse.
Segundo ela, a pesquisa, que busca entender como proteínas do nosso corpo atuam na replicação do vírus, é feita com experimentos na bancada de laboratório todos os dias. “Preciso ir ao laboratório, mas sem o pagamento não consigo nem carregar meu Bilhete Único [de transporte]. É desesperador”, relata.
De maneira temporária, ela conseguiu que sua orientadora ajudasse com o valor da passagem, mas teme agora ficar sem ter como pagar o aluguel e a comida.
Pesquisas como a da bióloga têm impacto direto nas políticas de saúde e podem ajudar no entendimento de diversas doenças, mas nem todos têm o mesmo reconhecimento. “Meu irmão faz mestrado na Alemanha em ciências sociais. Se eu que estudo câncer estou com dificuldades, imagina quem é da área de humanas, como ele”, conta.
Natália Teixeira, 31, é doutoranda em direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e também necessita da bolsa para se manter. “Quando a gente escolhe se tornar bolsista da Capes, não pode exercer outra atividade profissional.”
Ela cursa seu doutorado desde 2020 e, no início, não tinha acesso a uma bolsa -ela precisou conciliar a pós com um trabalho de pesquisadora em uma ONG. A rotina era difícil e, assim que surgiu a oportunidade de se tornar bolsista da Capes no primeiro semestre de 2022, ela aceitou.
“Eu escolhi a bolsa da Capes para ter tranquilidade em fazer pesquisa. Daí, eu acordo com essa notícia. Eu não tenho outra fonte de renda nesse momento. Eu dependo da bolsa.”
Uma doutoranda do programa de semiótica e linguística geral da USP que estuda a representação da mulher no cinema brasileiro e pediu para não ter o nome divulgado chama atenção para o fato de que a suspensão do pagamento não paralisa o prazo de entrega da sua tese -ou seja, ela e outros pesquisadores não podem paralisar seus estudos mesmo sem receber a bolsa.
No último dia 1º, mensagem do Tesouro Nacional encaminhada ao MEC e unidades anunciou que o governo “zerou o limite de pagamentos das despesas discricionárias” da pasta para o mês de dezembro. Esses recursos não incluem gastos obrigatórios, como salários.
Na segunda (5), após reunião com a equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o atual ministro Victor Godoy reconheceu os problemas orçamentários e afirmou que negocia com os ministros Paulo Guedes (Economia) e Ciro Nogueira (Casa Civil) para tentar garantir a execução das políticas públicas de Educação.
No dia seguinte, a Economia divulgou uma portaria que permite ao MEC utilizar cerca de R$ 300 milhões destinados inicialmente a despesas obrigatórias para as despesas discricionárias. Mesmo com a medida, o valor é insuficiente. A Folha teve acesso a uma nota técnica da Capes em que a coordenação afirma que, só para cumprir seus pagamentos de novembro, seriam necessário mais de R$ 398 milhões.
Presidente da Associação Nacional dos Pós-Graduandos, Vinícius Soares afirma que o novo contingenciamento é um reflexo de outros cortes já vinham sendo destinados à educação brasileira.
“Esse cenário que estamos vivendo hoje é o final do apagão do nosso sistema nacional de educação. Nos últimos quatro anos, Bolsonaro proferiu sucessivos cortes no setor da educação”, diz.
A associação criou um abaixo-assinado na última terça e convoca a todos os bolsistas e pós-graduandos a uma paralisação a partir desta quinta (8) caso os pagamentos das bolsas não sejam realizados.
Com a hashtag #PAGUEMINHABOLSA, a ação já acumulava mais de 140 mil interações e mais de 60 mil menções a Capes.
Para Schiersner, o problema da forma como a ciência é reconhecida no Brasil é o cerne da questão. Enquanto os bolsistas são responsáveis por mais de 80% de toda a produtividade científica no país, a falta de reajuste das bolsas de pesquisa (atualmente, R$ 2.200 para o doutorado e R$ 1.500 para o mestrado) e a obrigatoriedade de ter vínculo com o órgão de financiamento dificultam que os pesquisadores tenham renda adicional.
“Nós temos que assinar um acordo de vínculo sem possibilidade de remuneração de outra fonte de renda, mas não temos nenhum benefício. A bolsa é vista como um auxílio à pesquisa, mas equivale ao nosso salário”, conta.
EM SP, UNIVERSIDADE LIBERA RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO
Além da Capes, os cortes impactaram as universidades e institutos federais que dependem de repasses do MEC para pagar auxílios estudantis e serviços nos campi. A UFABC (Universidade Federal do ABC) é um desses casos. Cerca de R$ 7 milhões destinados a pagamentos de terceiros para limpeza e segurança, por exemplo, e outros R$ 750 mil dedicados a auxílios estudantis foram congelados.
Dácio Matheus, reitor da instituição, afirma que os valores contingenciados a bolsas de estudantes é o que mais preocupa a universidade.
“Esse é o mais crítico porque é um impacto direto e imediato. O estudante que estava esperando uma bolsa de R$ 400 para pagar o aluguel da república, para ter dinheiro do ônibus para chegar à universidade ou para pagar o restaurante universitário corre o risco de não conseguir se manter.”
Os custos da manutenção da instituição também são relevantes, mas é improvável que os serviços parem por conta de uma cláusula contratual que permite o atraso no pagamento. Mesmo assim, o reitor se preocupa com o acúmulo de dívidas que a universidade pode encarar.
“Nós já temos um valor [em dívida] referente ao mês de novembro que não temos recurso para honrar. Se não vier algum recurso até o final do ano, acumulamos também as dívidas de dezembro”, diz.
A Unifesp também não conta com recursos. Segundo Tania Mara Francisco, pró-reitora de administração da instituição, já são mais de R$ 7 mihões de despesas que precisam ser pagas. E o rombo pode aumentar.
“Conforme for passando, esse valor deve aumentar porque as notas fiscais são emitidas durante o mês de serviços prestados no mês anterior”, afirma.
Assim como na UFABC, uma grande preocupação é os alunos em situação vulnerável. Diante disso, a universidade optou por disponibilizar gratuitamente o restaurante universitário para aqueles que têm renda familiar per capita de até meio salário mínimo.
O problema é que o próprio recurso para pagar o serviço do restaurante universitário está bloqueado. “Nós temos um contrato, então na realidade estamos contraindo uma dívida para o futuro”, conclui a pró-reitora.
*** Informações com ➡ JORNAL DE BRASÍLIA
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